sexta-feira, 4 de junho de 2010

CASA DE PARDAIS

Sob a sombra de uma árvore frondosa, com pequenos cachos liláses, num quintal do Menino Deus, meus sonhos foram sonhados. Lá ainda deve estar,cinamomo centenário, guardando segredos e crenças de duas gerações que viveram numa época muito mais romântica.
Tem fotos dos meus pais adolescentes recém casados,  exatamente no mesmo lugar que tenho fotos minhas.
Minha mãe dizia que a sua seiva derramada no aço de uma faca, em noite de São João, deixaria gravada a primeira letra daquele que seria o dono do meu coração. Aconteceu, de verdade!
Em um ano que hoje é impossível relembrar qual, lá estava eu perplexa olhando para aquela suposta letra E.
Passei em revista todos os Es das minhas ainda restritas realações juvenis e confesso que alguns até me fizeram sonhar.
Quantos sapos tive que beijar até acreditar ter encontrado o "principe encantado", aquele descrito nos menores detalhes pela minha mãe sonhadora, alto, loiro de olhos azuis?
Ele chegou um dia, inesperadamente,trazendo como carta de recomendação a sua imponente letra E, mas veio com defeito de fábrica e sem manual de reparação.  Diante disto me pergunto se este foi um dos motivos encantados pelo qual eu disse sim ao homem errado, aliás, corrigindo, ao homem mais errado que passou pela minha vida?
Casei e descasei no tempo da mudança entre três estaçoes. Verão, Outono, Inverno. Na primavera ele foi sumariamente descartado, com ou sem profecia.
Nunca mais quis correr o risco e esqueci por completo das superstições repassadas de geração em geração pelas mulheres da minha família.
O velho cinamomo que abrigou a minha infância na Rua José de Alencar, com seus galhos orgulhosos amparando as cordas do me balanço azul, era casa de pardais, de bentevis, de vagalumes que o iluminavam com suas luzinhas verdes lusque-fusque, como se fosse natal eternamente.
Ao seu redor, caramujos e formigas faziam suas viagens encantadas a "lugar nenhum", que era um lugar dentro do seu tronco, e eram seguidos de perto pelos meus curiosos olhos de menina .
Desbravei seus galhos mais altos em aventura, querendo ser a sua fada em meio aos elfos que eu tinha certeza habitavam ali. Trago cicatrizes no corpo e estrelas na lembrança. Tantos tombos e quantas novas investidas tronco acima.
Quantas laranjas de sabor mais doce chupei à sua sombra, aproveitando os raios de sol que generosamente deixava passar entre os seus galhos para aquecer os meus invernos de luvas de algodão?
Amparou meu corpo quando este cambaleou na emoção do primeiro beijo, foi cúmplice desse segredo!
Em dias de chuva, o cheiro da terra molhada misturava-se ao som de suas folhas que balançavam no assovio do vento... Minuano, que saudade!
Lembro do meu pai podando seus galhos no início do outono e todas as crianças brincando com seus cachos de bolinhas verdes, sementes de suas flores. Depois uma enorme fogueira crepitava com os seus galhos secos, produzindo lindas faíscas ao anoitecer.
Eu tenho um medo sobrenatural de voltar lá e não encontrá-lo mais. Descobrir que com ele foram embora as minhas fadas e duendes.


Texto de 1996 - direitos reservados Liane Flores - Ed. Movimento

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