quarta-feira, 2 de junho de 2010

Uma Carta a João Gallego

A noite é nossa amiga João, quieta, todos dormem, ninguém escuta nossos pensamentos, ninguém espreita atrás da porta querendo invadir nossos segredos.
E como é bom estar só, ouvindo no silêncio apenas o bater do nosso coração e o lento compasso da nossa respiração. Pois é João, dá uma sensação de liberdade como aquela que se tinha antes mesmo da gente querer ser grande, lembra como era?
Quanta ingenuidade! Ninguém nos dava bola! Nossos segredos eram tratados como tolices de crianças, nossos pensamentos a ninguém interessavam, pelo contrário, por mais que insistíssemos, sequer nos escutavam.
Éramos donos de nós mesmos e ser refém de alguém era o nosso maior desejo.
Ah! João, hoje as paredes se fecham sobre nós. Vivemos no fio da navalha, síndrome de pânico, o ar nos falta... e as portas?
As portas, meu amigo, são nossas piores inimigas quando se fecham para nós e atrás delas dão abrigo e escondem as piores traiçoes.  São cúmplices e protetoras daquele que não mostra a cara, mas de quem conhecemos muito bem as piores intenções.
É João, já está na hora de buscar uma saída, enfrentar nossos carrascos, os de capuz na cara que nos botam a corda no pescoço, sorrindo entre os dentes de veneno, olhando a nossa cara com crueldade escancarada, por rancor, inveja, vaidade ou simples monotonia de só querer e nada ser. Pura covardia!
Então a vida vai se tornando perigosa e, de susto em susto, testamos nossa coragem convivendo entre lobos
com peles de cordeiros, fantasmas sob os nossos travesseiros que nos impedem de dormir em paz.
E tanto faz a nossa inocência meu amigo, pois o Profeta crucificado já dizia: " que pague o justo pelo pecador".
Então vivemos com a nossa dor e o temor diante de armadilhas e ciladas meticulosamente planejadas, que puxam o tapete sob os nossos pés, roubam nosso chão jogando nossos sonhos em precipícios de desilusão.
Olha João, faz muito que eu tenho pesadelos, desses que incluem crimes, brutalidades, assassinatos, coisas cruéis, fatalidades... são as notícias! Na verdade tenho tentado me defender materializando lírios, buscando nas minhas crenças as melhores intenções, e, João, tenho certeza, o mundo não merece os sobressaltos do meu coração.
Sabe, aqui nesta madrugada eu olho o meu gato ressonando e tento aprender com ele a doce serenidade dos animais. Aquela certeza obstinada de quem sente-se protegido, amado, cheio de confiança enquanto dorme, sem medo de sofrer um extermínio sequer emocional.
João, neste ser inofensivo que dizem ser irracional é que encontro às vezes uma resposta.
Deveríamos olhar melhor os bichos e ver que a nossa racionalidade tem alguma coisa errada. Dentro das circunstâncias prefiro esta comparação. Talvez as nossas embalagens estejam com prazos vencidos, motivo de toda esta deterioração.
Me julgas incoerente?
Achas que não digo coisa com coisa?
Mas falo com a melhor das intenções...
Acendo uma vela, um incenso, abro a porta da sacada e deixo o suave vento da noite entrar, ultimamente tenho muita falta de ar.
Saber? Não se de nada!
Sempre penso como era na minha juventude, tinha tanto espaço, tanto respeito, tanta consideração.
Abro a gaveta e olho fotografias, sinto saudades. Que tempo bom!
Olha João, é nesse amontoado de experiências que eu vasculho noite e dia, buscando sabedoria, que às vezes encontro um vestígio de esperança. Mas te confesso meu amigo, que olho para todos os lados e choro por mim, por ti, por todos nós.

nota da autora: João Mendoza Gallego - Psicólogo - meu terapeuta nos anos 90
texto de 1994
dir.resv. Liane Flores - Ed. Movimento

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