quarta-feira, 2 de junho de 2010

NÓS DOIS HÁ MUITAS ERAS

Nós dois há muitas eras estivemos juntos, tínhamos outro colorido e muito brilho.
Hoje,quando enfrentamos sombras e nos enredamos pelas teias de recordações estranhas, cortamos passagens por nossos becos escuros e labirintos perigosos de casas demolidas, cheiro de mofo e de fuligem nos telhados, nossos subúrbios onde vivemos vidas passadas.
Aos gritos, eu e tu, clamamos por nossos fantasmas e entramos em cavernas assombradas. Quantas lembranças dolorosas revividas!
Reabrimos cicatrizes de feridas e sangramos outra vez. Rimos e choramos, ouvimos os lamentos das paredes que gravaram a nossa história.
Tu e eu, há muitas luas atrás tínhamos outra respiração, outros desenhos pelo corpo, muita impertinência, enchíamos os quatro cantos do nosso mundo com vozes e gargalhadas.
Cantamos muitas vezes juntos embalados pelo vento à beira de um abismo, traçamos nosso caminho, trançamos um cordão interminável de espinhos que nos feriram através do tempo da nossa história.
Muitas vezes, de tão assustadores, espantamos os espiritos que nos enlouqueciam.
Eu e tu, há muitas páginas atrás, aprendemos a conviver com nossas tramas intrincadas, nosso universo complicado, provamos do gosto amargo da inquietude, giramos em torno de nós mesmos e do destino.
Nossa imagem ficou refletida em espelhos pelos cantos de muitos quartos, na imensidão que nos envolvia em tudo o que existe sob as estrelas.
Esses coloridos que nos pintaram, faltam hoje quando estamos separados
e remetidos a um sono vegetal de pura expectativa entre duas existências.
Temos um jeito absurdo de ver as coisas, eu e tu, diferentemente entregues ao egoísmo de nossa individualidade pragmática.
Por vezes implicantes e sem limites olhamos separadamente a mesma lua, estúpida e fria, pela distância que nos impõe.
Prezamos igualmente nossos crimes praticados numa intimidade de tartarugas que dividem o mesmo casco,
totalmente cúmplices e debochadas. E essa nossa organizada desordem de sentimentos, o prazer escorregadio dos pequenos deslizes e dos grandes pecados.
Conhecemos bem a nossa dor e o desespero!
E agora, onde estão aquelas artimanhas e confidências, os sucessivos acessos de riso e aquele frenético ritual em volta da fogueira que nunca mais aconteceu?

texto publicado em 2001 - direitos reservados Liane Flores - Ed. Movimento


E o galo já cantou!

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