quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Lá está a lua dos poetas, eu a convido para ser minha cúmplice todas as noites, minha plantonista das madrugadas, já que agora estou só, pois meu companheiro de jornada, Mr. Pavarotti, meu lindo gato siamês que foi assassinado no reveillon de 2003 em Ponta das Canas, já não está mais comigo, eu, sua bruxa, nós tinhamos um pacto de sermos juntos um só defunto. Ele me abandonou e a vida que perdeu era a sua última, mas sei que nos encontraremos um dia, porque com certeza ele já foi um poeta boêmio. Adorava quando eu lia meus textos e poemas para ele, que ouvia com seus olhos azuis rasgados semiscerrados, depois dava o ar da sua graça, mesmo se eu não pedisse. Agora não tenho com quem dividir as madrugadas, então deixo a porta aberta para a lua ficar me espiando.
Da sacada do meu estúdio, me encantam tantas cores e meu Buda se queda em paz entre as pedras de rio
Peço desculpas pelos erros de digitação, de forma, amanhã já estarei fazendo as correções necessárias.
foto da minha casa ao anoitecer, por entre as arvores do jardim a lua dos poetas já vinha me encantar.

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SUPERLATIVA

Desde muito nova eu nunca me adeqüei a diminutivos como, boazinha, arrumadinha, quietinha, meiguinha, comportadinha, aliás, tudo em mim era exagerado. Sempre fui superlativa.
Lembro quando ouvi pela primeira vez a canção de Cazuza , exagerado, pensei, este cara já ouviu falar de mim!
Inquieta e curiosa, vivi minha infância entre tapas e castigos, pois meus pais eram muito jovens e não sabiam como lidar com aquele vulcão em eterna ebulição.
Fui crescendo agregando adjetivos desqualificativos que colaram na minhapersonalidade, hoje digo, graças a Deus!
Como não me enquadrava nos interesses das meninas e preferia subir em árvores, desmontar bonecas, sujar a roupa, invadir assuntos proibidos à minha idade, fazer o que não devia, dizer o que não devia, ser o que não devia, meu pai generosamente me brindava com rótulos depreciativos.
Perguntar era o meu verbo favorito.
Ler passou a ser o meu maior interesse, uma vez que vivia cumprindo pena em cárcere privado.Havia um lugar especial para me confinar, ficava entre as portas do armário do quarto do quarto dos meus pais. Formava um canto propício.Ali passei grande parte da minha primeira infância e ali fui contemplada com a minha primeira fobia. Baratas! Elas circulavam em torno de mim, enquanto eu berrava de pavor.
Nos dias de hoje, tal comportamento seria motivo de denúncia à vara da infância, por infringir os direitos da criança, mas naquela época tal comportamento era tido como um dos princípios da disciplina educacional.
Aos cinco anos, fui matriculada no colégio das irmãs Franciscanas de São Bernardino, cuja “Ordem” era exaltada por serem anjos de bondade e dedicação ao próximo. Cruz Credo!
Logo no primeiro ano, a irmã responsável pela minha classe pediu autorização aos meus pais para corrigir algo em mim, que ela com educadora julgava intolerável. Eu perguntava demais .
Apesar de fazer um longo tempo, lembro perfeitamente o que causou a fúria da minha freira-professora.
Durante uma aula de religião, fiquei confusa sobre todo o homem ser a imagem e semelhança de Deus. Tal dúvida surgiu porque tínhamos diversas imagens Dele pelas paredes e corredores. Ele era branco, velho e tinha barba. Só quem eu conhecia igual a ele era o Papai Noel.
Na ingenuidade dos meus cinco anos, não conseguia achá-lo parecido com ninguém mais, principalmente com meus amiguinhos.
Então, sendo quem era, perguntei: como era possível todos sermos iguais a Deus, se éramos todos tão diferentes?
É claro que a religiosa logo recebeu carta branca de meu pai para corrigir-me.Por conta disto, acabei em pé na frente dos meus colegas, com um esparadrapo colado na boca. Nasceu daí a minha segunda fobia: o silêncio da ignorância, da intolerância.
Mais tarde, no terceiro ano, conheci Irmã Marcela, o pior bicho papão que freqüentou meus pesadelos por muitos anos.
Era minha professora de matemática, matéria que jamais foi privilegiada com a minha atenção ou o meu interesse, então as dobras dos meus pequenos dedos eram constantemente abatidas por golpes do apagador da lousa.
Através da dor aflorou a minha terceira fobia: matemática.Assim, sendo corrigida dia após dia, fui piorando gradativamente até o curso ginasial. Nessa época eu era um perigo.
Meus olhos enormes e brilhantes viajavam pelas janelas da classe, nas asas da imaginação e através da leitura constante criei mundos paralelos, aonde me refugiava dos opressores.
Claro que ainda não conhecia todos estes termos, mas tinha uma sensação esquisita que a vida não podia ser apenas do jeito que eles a entendiam.
Passei a escrever minhas impressões naqueles pequenos diários que as meninas recebiam de presente das madrinhas. E impressões era o que não me faltava. Então renasceu a minha primeira grande paixão: a literatura, porque acredito firmemente que ela me acompanha através do tempo dos meus tempos.
No decorrer desta história, Deus, aquele velho de barba branca das imagens penduradas por todos os cantos da escola, talvez penalizado pela minha má sorte , convenientemente deixou que eu fosse neta do meu avô, um anjo que foi destinado para a minha alegria e prazer. Com ele e por ele cresci aprimorando o que tinha de bom, a curiosidade e a vontade incansável de fazer perguntas. Ele sempre tinha respostas para todas as minhas perguntas e se deleitava com nossas conversas intermináveis.
Eu era a sua neta preferida e ele o meu mentor,com ele troco idéias até hoje, porque continuamos nos encontrando nos meus sonhos.
Toda esta história voltou à minha lembrança por causa de um livro que estou lendo, chama-se Mentes Inquietas, escrito pela Dra. Ana Beatriz Barbosa Silva e trata sobre pessoas especiais, daquelas que achavam que não tinham jeito, pessoas DDA – com Distúrbio do Déficit de Atenção, que basicamente nasce de algo que se denomina trio de base alterada, formado por alterações da atenção, impulsividade e velocidade da atividade física e mental. Resultado, o DDA oscila entre o universo de plenitude criativa e o da exaustão de um cérebro que não pára nunca.
Dentro deste contexto me enquadrei. Não totalmente, mas com inúmeras características, principalmente oriundas da infância, e senti um grande pesar pela ignorância deste assunto por parte dos meus pais.
Na medida que ia avançando na leitura, mais gostava de ser enquadrada junto com outras pessoas ali citadas, como Albert Einstein, Fernando Pessoa, Henry Ford, Leonardo Da Vinci, Beethoven, Van Gogh.
Quem conhece suas obras, conhece seus traços de loucura, seus temperamentos difíceis e alterados, a sua criação. Realmente, nós os exagerados somos muito criativos.
Em comum temos apenas os traços DDA.O que importa é que todos eles deixaram sua passagem registrada na história da humanidade e eu, um grão de areia diante deste oceano de sabedoria, sei apenas que muito depois da minha partida, alguém poderá estender a mão em uma biblioteca qualquer e ouvir minha voz sussurrando ao vento, através de sua imaginação. Meus penamentos, minhas indagações, alegrias, tristezas, sentimentos, tudo ficará reverberando no universo, como a voz que nunca calei.

sábado, 10 de julho de 2010

PEDRA FILOSOFAL

E todas as coisas que eu gostaria de fazer apenas para te agradar?
E as que eu gostaria que tu fisesses para me encantar?
Quando abro meus olhos pela manhã, antes mesmo de ver o sol, teu rosto acende diante
dos meus olhos, como uma luz, bem ali ao meu lado onde ainda dormes.
Teu travesseiro, meu travesseiro, nossos pés sempre se reencontrando sob o mesmo cobertor.
Na verdade sempre fomos nós dois! Sinto-me tão confortável ao teu lado.
Sabe, acho que confortável é a melhor sensação de um relacionamento. Sinto-me protegida
ao teu lado. Os minutos valem por dias e parece que o nosso amor tem raízes milenares,
encravadas pelas forças da natureza, por um poder absoluto que nos une, ele é uma
pedra filosofal que remonta ao tempo de existência de nós dois, através do tempo de existência
da própria humanidade e cuja trajetória se cruza, em cada nova vestimenta de nossas almas.

sábado, 5 de junho de 2010

MANUSCRITO DE MÁRIO QUINTANA - PREFÁCIO DO MEU PRIMEIRO LIVRO NA TEIA DA ARANHA, este manuscrito foi doado por mim à Casa Mário Quintana em 2006

ESCADA DE VIDRO

Fui subindo
ao encontro da verdade
que há muito eu buscava
e quanto mais subia
mais de mim a verdade se afastava.
   Tantos obstáculos encontrei no meu caminho,
        que lágrimas de dor e frustração eu derramei sozinho.

Eu subia, eu subia
    e a verdade mais de mim fugia.
   Era o abismo que me rondava
     e um ser cheio de luz que me guiava.

         Diante dos meus olhos, de repente,
         uma escada de vidro fez-se aparente
        e para subi-la com segurança
            fiz com o ser de luz uma aliança.

   Desnudei meus pés,
       levei de mim somente a essência,
deixei ali no chão
         todo o traço da aparência.
           Então a verdade eu encontrei,
            pois sempre esteve lá à minha espera.

    Agora,
          à qualquer hora,
              dispo a matéria que me estressa
           e subo a escada de vidro,
           é lá que minha vida recomeça.

                do livro Para Um Homem Chamado Silêncio - parte: Sonhos

                    Direitos reservados: Liane Flores
                   Editora Movimento
    
LIANE NARA DE AZEVEDO FLORES MINUZZI - LIANE FLOREScontato:lilicattmoon@yahoo.com.br

sexta-feira, 4 de junho de 2010

ELO PERDIDO E FENDA EM DIAMANTE - do livro A Outra Face - 2003

ELE QUE SE REVELA SEM FALAR,
NO SILÊNCIO TÃO SEU,
REPOUSOU NA MINHA SOLIDÃO.

És a estrela
que me acende o céu
em cada nova noite
e novamente sente
que a vida ida
jamais retornará.
Quem te dirá
o que me vai na mente?
O que te vai na mente,
quem me revelará?
              
                                                       dir.res.Liane Flores - Ed. Movimento                               


Eu queria estar perto, tão perto de ti,
que no espaço que sobrasse entre a tua boca e a minha só coubesse um beijo.         




dir.reserv.Liane Flores

NUMA TAÇA DE CRISTAL EU TE PROPONHO, UM BRINDE ESPECIAL A ESTE SONHO

Quero magia
na região que escolherei como pousada.
Quero porta estreita
por onde não passe a mágoa que espreita.
Quero deslizamentos suaves,
carícias imaterias do vento,
cores difusas, caleidoscópicas,
no grande espetáculo das forças do universo
reunidas no firmamento.
Quero energia cósmica,
quero rabos de cometa
e com eles navegar
pelos mistérios grandiosos do planeta.
Quero ver a lua branco-marfim
(às vezes prata)
refletir a sua luz na mata.
Quero ser águia
sobrevoando as montanhas,
rasgando os céus com minhas asas,
rompendo das nuvens as entranhas.
E ao pousar no chão
(em mim)
quero a força da pantera então!
Quero sentir da relva a umidade,
eu quero da selva a imunidade,
quero viver sem vaidade,
sem lamentos vãos!

ESTRANHO SONHO -Da série Sonhos - ( são poemas que escrevo a partir de sonhos lembrados)

  Por sobre as águas voei
      ultrapassando mares e montanhas
      sem saber quem eu era.`
     Pássaro, luz, essência de vida,
   quem me dera!
E rumei ao sol poente, de entranhas violeta atraente.
  Sem olhar para trás,
     e, por abstrata, nele me fundi
    incandescente,
        indecente prazer me tocando
            e eu voando, voando, voando...

do livro Para Um Homem Chamado Silêncio - parte: Sonhos
Minha alma é testemunha milenar da criação,
fez parte da primeira célula.
Certa de sua existência imortal,
navega oceanos de saber
pelo tempo infinito da matéria,
por apenas ser. E assim será
na Apoteose do universo, como foi na Gênese...
Se foi princípio será fim.

IMORTALIZAÇÃO/ DESEJO

DEIXO EM TI
O RASTRO DESTA PASSAGEM PERPETUADO.
E, QUANDO MAIS MEU VERBO
NÃO ECOAR AO VENTO,
AO ALCANÇE DA TUA SAUDADE
EU ESTAREI

Que o primeiro beijo teu nunca tenha fim
seja veneno percorrendo em mim.
Seja repicar de sinos,
torrentes de cascatas,
explosão de meteoros
incandescendo
( à flor dos poros).
Por favor, beija-me assim.


do livro A Outra Face - Ed. Movimento- dir. reserv. Liane Flores

ANELO


COM QUE DIREITO
ME FIZESTE REFÉM DA TUA PRESENÇA
CONSTANTE ATÉ NA AUSÊNCIA
QUE POR VEZES ME IMPÕES?

o tempo passou lentamente
e a tua ausência
cresceu dentro de mim
até tornar-se insuportável.
Urgia que eu te ouvisse,
então disquei teu número
e o ruído constante
das chamadas insistentes
confirmaram tua partida.
Tua voz não veio
e na distância
procurei trazê-la à mente
e te quis perto,
e te quis presente...
O resto da tarde
perdeu o significado.

dlo livro A Outra Face - 1983 - Ed. Movimento

Estranha História de Nós Dois

Quanto mais fundo entro no meu caos,
melhor, muito melhor me oriento,
lá estás, como um universo vivo,
vagando pelas linhas do meu pensamento.
Devemos nos redimir, fomos maus!
Parceiros de tudo o que não era percebido,
tu, atrás de uma muralha,
eu, aventureira,
querendo desbravar o teu desconhecido.
Nem mesmo o Pai Eterno nos salvou daquele inferno!
Queimamos juntos, pois já que a fogueira
foi acesa por nós dois, de brincadeira.
E mesmo que depois tenha vindo a saideira,
muitas águas rolaram debaixo daquela ponte...
E nem me dei conta da enxurrada,
eu própria estava lá e vi,
se tu morreste afogado, eu com certeza não sobrevivi.
Ainda que no sono da morte
a tua sede eu aplaquei na minha fonte,
teu abandono eu bracei mais forte,
pois ele não tinha dona, bem sei.
Na nossa cama com o teu cheiro eu deitei,
teu travesseiro me abrigou naquela noite
depois que o vento te levou para tão longe...
Ninguém te disse o quanto eu chorei?
Então, quando de ti eu precisei, faltaste
e perguntei por que me abandonaste
se aqui nesta morada sempre foi o teu lugar?
E a tua voz de novo me negaste,
somente o teu silêncio
pude ouvir na madrugada, exausta, cansada,
e de tanto lamentar, adormeci ali sozinha...
Pela janela aberta se refletia, no mesmo céu que te cobria,
a noite em despedida abraçando um novo dia.


Texto publicado em 2001 - participou da Mostra de Arte da Caixa Federal  em Santa Catarina
direitos reservados - Liane Flores - Ed. Movimento

CASA DE PARDAIS

Sob a sombra de uma árvore frondosa, com pequenos cachos liláses, num quintal do Menino Deus, meus sonhos foram sonhados. Lá ainda deve estar,cinamomo centenário, guardando segredos e crenças de duas gerações que viveram numa época muito mais romântica.
Tem fotos dos meus pais adolescentes recém casados,  exatamente no mesmo lugar que tenho fotos minhas.
Minha mãe dizia que a sua seiva derramada no aço de uma faca, em noite de São João, deixaria gravada a primeira letra daquele que seria o dono do meu coração. Aconteceu, de verdade!
Em um ano que hoje é impossível relembrar qual, lá estava eu perplexa olhando para aquela suposta letra E.
Passei em revista todos os Es das minhas ainda restritas realações juvenis e confesso que alguns até me fizeram sonhar.
Quantos sapos tive que beijar até acreditar ter encontrado o "principe encantado", aquele descrito nos menores detalhes pela minha mãe sonhadora, alto, loiro de olhos azuis?
Ele chegou um dia, inesperadamente,trazendo como carta de recomendação a sua imponente letra E, mas veio com defeito de fábrica e sem manual de reparação.  Diante disto me pergunto se este foi um dos motivos encantados pelo qual eu disse sim ao homem errado, aliás, corrigindo, ao homem mais errado que passou pela minha vida?
Casei e descasei no tempo da mudança entre três estaçoes. Verão, Outono, Inverno. Na primavera ele foi sumariamente descartado, com ou sem profecia.
Nunca mais quis correr o risco e esqueci por completo das superstições repassadas de geração em geração pelas mulheres da minha família.
O velho cinamomo que abrigou a minha infância na Rua José de Alencar, com seus galhos orgulhosos amparando as cordas do me balanço azul, era casa de pardais, de bentevis, de vagalumes que o iluminavam com suas luzinhas verdes lusque-fusque, como se fosse natal eternamente.
Ao seu redor, caramujos e formigas faziam suas viagens encantadas a "lugar nenhum", que era um lugar dentro do seu tronco, e eram seguidos de perto pelos meus curiosos olhos de menina .
Desbravei seus galhos mais altos em aventura, querendo ser a sua fada em meio aos elfos que eu tinha certeza habitavam ali. Trago cicatrizes no corpo e estrelas na lembrança. Tantos tombos e quantas novas investidas tronco acima.
Quantas laranjas de sabor mais doce chupei à sua sombra, aproveitando os raios de sol que generosamente deixava passar entre os seus galhos para aquecer os meus invernos de luvas de algodão?
Amparou meu corpo quando este cambaleou na emoção do primeiro beijo, foi cúmplice desse segredo!
Em dias de chuva, o cheiro da terra molhada misturava-se ao som de suas folhas que balançavam no assovio do vento... Minuano, que saudade!
Lembro do meu pai podando seus galhos no início do outono e todas as crianças brincando com seus cachos de bolinhas verdes, sementes de suas flores. Depois uma enorme fogueira crepitava com os seus galhos secos, produzindo lindas faíscas ao anoitecer.
Eu tenho um medo sobrenatural de voltar lá e não encontrá-lo mais. Descobrir que com ele foram embora as minhas fadas e duendes.


Texto de 1996 - direitos reservados Liane Flores - Ed. Movimento

PACTO PROFANO

Quando te conheci tinhas um olhar que parecia assim... meio roubado do mar em dias de calmaria,
mas o mar moço, nós dois sabemos, é traiçoeiro e qualquer núvem no horizonte prenuncia tempestade.
Por muitas vezes pensei que tinhas "parte" e temi aproximar-me, ser cúmplice dos teus segredos,
teus labirintos perigosos, tua dança sagrada de pés descalços, aquela bata florida de cabala...
Teus olhos semicerrados, escondidos sob a aba negra do chapéu, um mistério que  penetrou nas partes
mais ocultas do desejo que habitava em mim.
Profano toque em uma taça de cristal, que das tuas mãos eu receb, e dela eu bebi em outra primavera.
Foi um pacto de sangue enfeitiçando o meu imprevisível amanhã. Sem memória original senti um medo
orgânico do invisível, de coisas do outro mundo, e minha frágil humanidade conheceu o desespero.
O teu riso assombrado contaminou meus sonhos arduamente construídos. Depois veio o vento que varreu
a minha história, o meu passado, dores antigas, velhas feridas.
Não devias ter me assustado com esses olhos de alma do outro mundo, que tudo viam através da noite que me cobria, negra e sem lua.
Não devias ter me pintado com o verde dos teus olhos, repletos de promessas e possibilidades, nas quais eu mergulhei sem salva-vidas.
Tentei fugir de ti, não pude!
Tua língua de comer insetos me alcançou e me colou entre as estrelas do céu da tua boca.
Então dei meu pescoço aos teus dentes de vampiro e o meu sangue envenenou as tuas veias.
Parece coisa tão antiga... história de outra era.


Texto de 2002 - direitos reservados Liane Flores - Editora Movimento

Retrato Falado



E esse topete engraçado de boneco dos desenhos animados?
E a tua boca de peixinho no aquário, abrindo e fechando em silêncio, parecendo um quadro no cenário?
Ah! que vontade de morder essas tuas bochechas de marshmallow, nessa tua cara deslavada de supermercado.
E esse teu gosto de geléia, teu cheiro de folha seca no telhado e o sorriso sem-vergonha de quem prometeu e não cumpriu?
E as tuas mãos cheias de dedos irriquietos, sem destino, sem direção, movendo-se constantemente na contamão, fazendo contravenção?
E esse teu jeito descarado de quem come lagartixas com catchup, depois se lambe e se deleita?
E essa aparência de vaso chinês, quando finges que não escutas, quando finges que não vês?
Adoro essa tua risada escrachada, por tudo, por nada, essa alegria permanentemente instalada na tua cara de dia de sol, principalmente quando colocas aquele nariz vermelho de palhaço que sempre trazes no bolso.
Ah! esse teu bolso... sempre cheio de surpresas!


texto publicado em 2002 - direitos reservados Liane Flores

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Pensamentos de uma feriado chuvoso -

As pessoas no geral são engraçadas. Cobram dos outros posturas que elas próprias não assumem diante da vida. Precisam de porta-vozes de coragem, mártires pela palavra que por todos erguerão um bandeira contra a violência do homem contra o próprio homem.
Elegem contraditoriamente aqueles de quem mais se diferenciam, os ditos malditos, excêntricos, muitas vezes denominados "artistas", palavra cujo significado parece que qualifica o engenhoso, astucioso, o diferente.
A partir daí começa se desenhar a sentença de morte do eleito, seja qual for a sua área de atuação. A crítica será feroz mesmo por parte daqueles que o escolheram, mas que não se enquadram no seu contexto, seja por ignorância, inveja ou cobiça.
A história nos deu o maior exemplo na figura de Judas, apóstolo e seguidor do Profeta chamado Jesus. Embora estivesse na foto, na mesa e nas pregações, vendeu o gande mártir da humanidade ao Poder constituído apenas por trinta dinheiros. Isto era muito, era pouco, enfim... como hoje, ele também teve o seu preço. Pagou por essa escolha?
Com certeza, porque toda a escolha tem um preço. Umas mais caras, outras mais baratas, mas é preciso pagar.
Qual teria sido o seu verdadeiro impulso? Ele seria apenas  um covarde?
Convenhamos, o homem sempre foi cliente preferencial dos pecados capitais. Gula, Luxúria, Preguiça, Vaidade, Inveja... todos ao meu ver,  sinônimos de humanidade. Certo ou errado? Não saberia dizer. Só sei que estão em nosso cardápio desde o início dos tempos,  Quem colocou este prato em nossa mesa? Com que intenção? Com  certeza não a melhor delas!
Quantas cabeças foram cortadas simplesmente por pensar e dizer?
Tantos foram os que se perderam em becos sem saída, verdadeiros labirintos cerebrais, pois entre o pensamento e a ação existiu a impotência de não haver unanimidade, e como resultado para muitos a tortura, a corda, o cutelo, a lâmina implacável da guilhotina, o calor da fogueira da inquisição, e no final o que sobrou foram  cinzas.
Quanto distante estamos daquelas execráveis execuções em praças públicas onde o algoz de capuz na cara era o grande comunicador das massas? O povo hipnotizado pelo poder da imagem não reagia, mesmo sendo a grande maioria. Poderia? Sim se quisesse poderia!
Não se enganem, esta figura cruel ainda continua entre nós e hoje se projeta muito
além das praças, via satélite e em cristal líquido, plasma, led, e continua dominando as massas, implantando idéias e comportamentos subliminarmente com inexatilhões de pontos de nitidez
Houve época que entre o absinto e o haxixe, mentes privilegiadas foram deterioradas pela avalanche de sentimentos encarcerados, que proibidos de se mostrarem, envenenavam e condenavam à morte lenta e gradativa cada célula que pudesse reproduzir uma faísca de liberdade, igualdade, fraternidade.
Muitos que se intitulam hoje preocupados com a sociedade capitalista estão de joelhos diante do consumo fácil, fútil e exacerbado, diante da escravização do povo que quer ter toda aquele pacote que favorece quem vive no topo da pirâmide social.
A humanidade desde o princípio dos tempos escolheu Ter a Ser. Suas maiores lutas foram por terras, por ouro,e o homem foi vendendo aos poucos a sua alma ao diabo.
Quantos conhecemos que citam e admiram grandes pensadores se dizendo seguidores e apontam em sua cartilha pessoal comportamentos que não condizem com a sua linha de conduta?
Em contraponto, do alto de seus privilégios, observam e rotulam o proletariado como serviçais e seres inferiores, não abrindo mão de qualquer vantagem que possa modificar o "status quo".
Jean Calvin disse que o homem nasce bom, a sociedade é que o corrompe.
Discordo, pois acredito que, quem disseminou pela primeira vez a idéia " ame o teu próximo como a ti mesmo, foi também quem teve e tem até hoje o maior Poder constituído.
Não seria lógico pensar que Ele, tem em sua essência, concreta ou abstrata, o bem e o mal em iguais proporções, como fórmula antagônica, e que esta fórmula serviu de amálgama para toda a criatura de Sua criação?
Realmente não sei porque começei este texto, mas com certeza o que me levou a escrevê-lo não tinha nada a ver com esta estrada que acabei percorrendo no pensamento e no teclado.


Liane Flores -

quarta-feira, 2 de junho de 2010

entrevista para o jornal Correio do Povo - no lançamento do livro O Grande Ausente

Mário ( Alquimista de sonhos)


MÁRIO   
meu velho poeta
   da rua das Dores,
   dos pôres do sol,
     sentas no banco da praça
e doas de graça
teu riso de mel.
  Mário, meu velho
Quintana,
    enganas a vida
      por vezes cruel,
logo
     a ti que a relatas
  mais bela
   adoçando
      a sua face de fel.
  Mario
  meu velho
     alquimista de sonhos,
agora chegou
tua vez,
ocupa a cadeira
que é tua, poeta,
na Academia dos Imortais
do Céu.




Liane flores - do livro Na Outra Face - 1983 - Ed. Movimento
ELE QUE SE REVELA SEM FALAR,
NO SILÊNCIO TÃO SEU,
REPOUSOU NA MINHA SOLIDÃO.
Muitas vezes as palavras não bastam para a difícil tarefa de traduzir
um sentimento forte, que muito de repente se faz necessário externar.
Então vem a lágrima que brota e lava toda a dor que geralmente naõ cabe dentro,
mas que é aprendizado sobre a incrível arte que é viver.
Vida, este livro que se lê e dele nunca se duvida!



Pensamento: d.reserv. Liane Flores - A outra Face

MEUS DEUSES PARTICULARES - reflexões fantásticas

TALVEZ ESTEJAMOS TODOS MORTOS, QUEM SABERÁ?
E já faz um tempo enorme que eu não consigo distinguir o sonho da realidade, pedindo sempre piedade aos pesadelos elementares, desses que incluem toda sorte de injustiças, violências, imparcialidades.
SERÁ QUE É O SONHO QUE ME SONHA?


Nesta minha vida mergulhada em literatura decidi me trancar dentro da alma, engolindo chaves, quebrando trancas, deixando as notícias se acumularem com jornais e revistas jogadas pelos cantos, intactas. Mergulho na ignorância dos acontecimentos sobre tudo, deixo tudo sem registro, pessoas, lugares... simplesmente abstraio.
O mundo por todos esses anos absorveu-me como uma gosma pegajosa, engoliu os meus castelos encantados, meus príncipes cavaleiros, meus lindos contos de fadas.
Quero agora enganar o destino tão previsível, discordar de tudo o que foi escrito no livro da minha vida, apagar página por página, até a folha vinte mil, seiscentos e quarenta e cinco.
Vou reescrever tudo outra vez no tempo da prorrogação.
Quero ouvir o silêncio das paredes, sua respiração dura de concreto, decifrar nas linhas de suas rachaduras iguais as minhas, qual será o fim desta jornada.
Preciso engolir os meus erros e enganos como engulo o pão nosso de cada dia, em seco, arranhando a garganta na passagem e quero nesta viagem encontrar uma saída, ver a luz no fim do túnel antes do trem me pegar.
Talvez eu entenda de uma vez por todas como entrei neste conflito de conduta, nesta vidinha filha-da-puta, carregando mais peso do que preciso, me libertar e deixar voar a minha alma de algodão.
Se vou enlouquecer? Sim com certeza!
Quero muita insanidade para poder nas tardes de inverno fugir deste inferno que acendi e deixar o ar gelado condensar as dores do meu peito para depois quebrá-las, uma por uma.
Cada caco que restar será um presságio lúdico do meu novo destino, como um quebra-cabeças encantado.
Preciso conhecer o mundo secreto governado pela magia das bruxas, dos duendes, dos faunos, dos unicórnios e de todo o ser que voa.
Tantos segredos nos meus caminhos, tão poucas asas, tantos novelos nos meus enredos, tão poucas cores, tantas novelas com muitas páginas já amarelas.
Nã quero por convivência transformar-me num micróbio contagioso, esculpir a cara com as  rugas nojentas da ambição, construir barreiras nos sentimentos, acorrentar o corpo com limites nos pontos e extremidades.
Por que sabotar a vida aceitando portas, sapatos, botões, trancas, vendas,  relógios barras de jaula, prisões, porradas?`
Preciso correr o risco e não deixar tocar em mim o mal suficiente que mora nos desejos desmedidos de consumo, da vaidade, da inveja, no monte absurdo de conhecimento e experiências acumuladas, sobre tudo, sobre nada e sobretudo quero cantar com sapos, navegar nas nuvens, acender estrelas e tocá-las, cavalgar a lua, vestir-me de corais e ter a única e imponderável certeza, que tudo isto existe e são os meus deuses particulares.


 Direitos Reservados da autora: Do livro Para um homem chamado Silêncio - Liane Flores - 2003 -                                       

Ruas de Liberdade - Rua José de Alencar

Percorro as ruas de Porto Alegre em busca das memórias da minha infância
que se perderam sob o duro concreto das transformações.
Tudo se renovou menos aqueles fantasmas que vivem ali na José de Alencar,
exatamente onde os deixei um dia.


Rua José de Alencar
que em minha meninice
tinha braços de afagar
e em suas calçadas antigas
perdido nas frestas do tempo
dorme um pedaço de mim.
Quantas vezes te retorno,
exausta, entorpecida,
pelas verdades que a vida
pouco a pouco me mostrou,
e cobro de ti a saudade
que o peito acomodou,
daquela casa amarela,
que tem em cada janela,
um vulto que me sorri,
um vulto que me deixou.




do livro A Outra Face - Ed. Movimento- 1983 - dir.reserv.Liane Flores


E o galo já cantou!

Prefeitura de Porto Alegre

Chegando ao paraíso

As pequenas luzes ao longe, contornando a ponte, piscando como estrelas nas janelas dos prédios quando acendem e apagam dizem que estou chegando. Agora falta pouco e dentro do carro somos ocultos  pela escuridão da noite que já se apresenta. Tudo passa velozmente diante dos meus olhos que te buscam para te ver completamente. Já posso identificar os teus contornos, o reflexo amarelado da Igreja das Dores, as sombras dos navios atracados no Cais do Porto, e lá na frente já  vejo majestoso e imponente o Gasômetro.
Graças a Deus estou chegando mais uma vez. Queria poder voltar para sempre,  e para sempre  a  deixar minhas pegadas  nas  tuas calçadas, Porto Alegre. O meu maior medo é morrer em outro lugar, pois quero as minhas cinzas jogadas num sopro do Minuano, para que minhas pertículas se dispersem no teu norte, no teu sul, no teu leste no teu Guaíba.


pequena oração para minha terra

ESTRANHOS SÃO OS POETAS

Poetas não são pessoas estranhas?
Têm olhos de ver beleza mesmo onde ela não existe mais.
Falam sozinhos, riem para o invisível, cultivam sentimentos ideais.
Acreditam poder superar o impossível,
escutam os elementais...
Ah! que gente surpreendente são os poetas!
Repartem com o mundo as suas emoções,
mesmo que repletas de dor, de saudade, desilusões,
e assim fazendo,
avivam sentimentos adormecidos em tantos corações.
Estranhos esses poetas!
Falam de amor em verso e prosa,
sempre iluminados,
donos de um universo de vivências quase sagradas,
referências de suas muitas
muitas vidas já passadas.
Por isso quando morre um poeta
a natureza entristece e chora
a lua apaga-se no céu como uma vela
e de luto, o vento assobia uma prece


direitos reservados: Liane Flores - Ed. Movimento/ 2003

E o galo já cantou!

NÓS DOIS HÁ MUITAS ERAS

Nós dois há muitas eras estivemos juntos, tínhamos outro colorido e muito brilho.
Hoje,quando enfrentamos sombras e nos enredamos pelas teias de recordações estranhas, cortamos passagens por nossos becos escuros e labirintos perigosos de casas demolidas, cheiro de mofo e de fuligem nos telhados, nossos subúrbios onde vivemos vidas passadas.
Aos gritos, eu e tu, clamamos por nossos fantasmas e entramos em cavernas assombradas. Quantas lembranças dolorosas revividas!
Reabrimos cicatrizes de feridas e sangramos outra vez. Rimos e choramos, ouvimos os lamentos das paredes que gravaram a nossa história.
Tu e eu, há muitas luas atrás tínhamos outra respiração, outros desenhos pelo corpo, muita impertinência, enchíamos os quatro cantos do nosso mundo com vozes e gargalhadas.
Cantamos muitas vezes juntos embalados pelo vento à beira de um abismo, traçamos nosso caminho, trançamos um cordão interminável de espinhos que nos feriram através do tempo da nossa história.
Muitas vezes, de tão assustadores, espantamos os espiritos que nos enlouqueciam.
Eu e tu, há muitas páginas atrás, aprendemos a conviver com nossas tramas intrincadas, nosso universo complicado, provamos do gosto amargo da inquietude, giramos em torno de nós mesmos e do destino.
Nossa imagem ficou refletida em espelhos pelos cantos de muitos quartos, na imensidão que nos envolvia em tudo o que existe sob as estrelas.
Esses coloridos que nos pintaram, faltam hoje quando estamos separados
e remetidos a um sono vegetal de pura expectativa entre duas existências.
Temos um jeito absurdo de ver as coisas, eu e tu, diferentemente entregues ao egoísmo de nossa individualidade pragmática.
Por vezes implicantes e sem limites olhamos separadamente a mesma lua, estúpida e fria, pela distância que nos impõe.
Prezamos igualmente nossos crimes praticados numa intimidade de tartarugas que dividem o mesmo casco,
totalmente cúmplices e debochadas. E essa nossa organizada desordem de sentimentos, o prazer escorregadio dos pequenos deslizes e dos grandes pecados.
Conhecemos bem a nossa dor e o desespero!
E agora, onde estão aquelas artimanhas e confidências, os sucessivos acessos de riso e aquele frenético ritual em volta da fogueira que nunca mais aconteceu?

texto publicado em 2001 - direitos reservados Liane Flores - Ed. Movimento


E o galo já cantou!

CARTA A JOÃO GALLEGO

João,
hoje vou vestir-me com meus fantasmas
para te rever
e, com a tua ajuda,
despojar-me destas vestes assombradas,
algumas mal costuradas,
à flor da pele,
como simples adereços fôssem.
Outras porém,
simbióticas, malditas, tatuadas,
impressas pelo tempo
de um tempo quase atemporal,
perdidas num labirinto de fumaça,
imprecisas,
vou arrancar de mim
a ferro e fogo, em sangue e dor.
Quero reler-me, reescrever-me,
quero recompor-me sim,
preciso!
Entre o limitado que me corrói o espirito
e o limitado que habita o meu imaginário,
como libertação absoluta anseio
encontrar minha unidade essencial,
é aí que ela habita, eu creio.

d.reserv.Liane Flores - Editora Movimento

E o galo já cantou!

Meu Oráculo ( Para João Gallego)

Lembro quando o vi pela primeira vez. Amigável, sorridente, enquanto eu desconfiada me perguntava o quanto queria estar à mercê daquele estranho que, fatalmente, iria invadir as minhas histórias mais secretas, mais doloridas, aquelas que nunca contei a ninguém, nunca escrevi.
Não sou tímida, longe, longe disto, mas confesso que fiquei intimidada com a simples perspectiva de abrir minhas gavetas secretas e baús de cadeados enferrujados, mostrando a ele sem pudor os ossos que quebrei pelos caminhos que percorri e os mortos que nunca consegui enterrar.
Aos poucos porém fui entregando-me ao som suave daquela voz e tempos depois, quando dei por mim, contava os dias e as horas que faltavam para encontrá-lo e desnudar a alma.
Um dia, nun insigth percebi que ele se transformara no meu Oráculo e mesmo sem a sua presença física e o invocava nas horas mais prosaicas. Conversava com ele mentalmente, trocava idéias.
Levou um tempo enorme para que eu aceitasse a sua humanidade, talvez porque nele eu encontrasse o reflexo de tudo o que me era significativamente importante: cultura, serenidade, despojamento, simplicidade, empatia. Ele tinha um profundo interesse espiritual pela alma humana, trilhava caminhos alternativos da ciência, das crenças.
Um dia, anos depois, era como se ele fosse um outro eu.



direitos reservados Liane Flores - Ed. Movimento - texto/2004

E o galo já cantou!

João Mendoza Gallego - Psicólogo, meu terapeuta nos anos 90/ Para quem o livro Na Teia da Aranha é dedicado

Uma Carta a João Gallego

A noite é nossa amiga João, quieta, todos dormem, ninguém escuta nossos pensamentos, ninguém espreita atrás da porta querendo invadir nossos segredos.
E como é bom estar só, ouvindo no silêncio apenas o bater do nosso coração e o lento compasso da nossa respiração. Pois é João, dá uma sensação de liberdade como aquela que se tinha antes mesmo da gente querer ser grande, lembra como era?
Quanta ingenuidade! Ninguém nos dava bola! Nossos segredos eram tratados como tolices de crianças, nossos pensamentos a ninguém interessavam, pelo contrário, por mais que insistíssemos, sequer nos escutavam.
Éramos donos de nós mesmos e ser refém de alguém era o nosso maior desejo.
Ah! João, hoje as paredes se fecham sobre nós. Vivemos no fio da navalha, síndrome de pânico, o ar nos falta... e as portas?
As portas, meu amigo, são nossas piores inimigas quando se fecham para nós e atrás delas dão abrigo e escondem as piores traiçoes.  São cúmplices e protetoras daquele que não mostra a cara, mas de quem conhecemos muito bem as piores intenções.
É João, já está na hora de buscar uma saída, enfrentar nossos carrascos, os de capuz na cara que nos botam a corda no pescoço, sorrindo entre os dentes de veneno, olhando a nossa cara com crueldade escancarada, por rancor, inveja, vaidade ou simples monotonia de só querer e nada ser. Pura covardia!
Então a vida vai se tornando perigosa e, de susto em susto, testamos nossa coragem convivendo entre lobos
com peles de cordeiros, fantasmas sob os nossos travesseiros que nos impedem de dormir em paz.
E tanto faz a nossa inocência meu amigo, pois o Profeta crucificado já dizia: " que pague o justo pelo pecador".
Então vivemos com a nossa dor e o temor diante de armadilhas e ciladas meticulosamente planejadas, que puxam o tapete sob os nossos pés, roubam nosso chão jogando nossos sonhos em precipícios de desilusão.
Olha João, faz muito que eu tenho pesadelos, desses que incluem crimes, brutalidades, assassinatos, coisas cruéis, fatalidades... são as notícias! Na verdade tenho tentado me defender materializando lírios, buscando nas minhas crenças as melhores intenções, e, João, tenho certeza, o mundo não merece os sobressaltos do meu coração.
Sabe, aqui nesta madrugada eu olho o meu gato ressonando e tento aprender com ele a doce serenidade dos animais. Aquela certeza obstinada de quem sente-se protegido, amado, cheio de confiança enquanto dorme, sem medo de sofrer um extermínio sequer emocional.
João, neste ser inofensivo que dizem ser irracional é que encontro às vezes uma resposta.
Deveríamos olhar melhor os bichos e ver que a nossa racionalidade tem alguma coisa errada. Dentro das circunstâncias prefiro esta comparação. Talvez as nossas embalagens estejam com prazos vencidos, motivo de toda esta deterioração.
Me julgas incoerente?
Achas que não digo coisa com coisa?
Mas falo com a melhor das intenções...
Acendo uma vela, um incenso, abro a porta da sacada e deixo o suave vento da noite entrar, ultimamente tenho muita falta de ar.
Saber? Não se de nada!
Sempre penso como era na minha juventude, tinha tanto espaço, tanto respeito, tanta consideração.
Abro a gaveta e olho fotografias, sinto saudades. Que tempo bom!
Olha João, é nesse amontoado de experiências que eu vasculho noite e dia, buscando sabedoria, que às vezes encontro um vestígio de esperança. Mas te confesso meu amigo, que olho para todos os lados e choro por mim, por ti, por todos nós.

nota da autora: João Mendoza Gallego - Psicólogo - meu terapeuta nos anos 90
texto de 1994
dir.resv. Liane Flores - Ed. Movimento

Espera

Numa noite solitária todos dormiam,
apenas eu, o gato e o relógio
respirávamos na solidão da sala.
Tic,tac,tic,tac,tic,tac...
eram três corações aflitos
quebrando um silêncio avassalador
e pela janela entreaberta,
três estrelas curiosas nos espiavam
por detrás da lua cobiçada pelos poetas
que tudo pintava com seu olhar de prata.
A rua concreta,
nua e deserta,
molhava de chuva a minha saudade
de ouvir os teus passos
de volta a minha porta,
de encaixar-me nos teus braços sem abraços,
beijar teu beijo frio
e olhar de novo a tua cara torta.

direitos reservados: Liane Flores = Ed. Movimento/2003

E o galo já cantou!

FANTASMA DE OTACÍLIO ( para Pavarotti)

Hoje senti a tua falta como se tivesses me deixado ontem e lembrei do teu pequeno corpo sem vida, revivendo a agonia daquele maldito dia! Sofreste abandonado a tua própria sorte e eu chorei de novo a tua morte.
Maldisse mil vezes a minha impotência diante do fato consumado, minha sensação de negligência pelo que poderia ter sido evitado.
Às vezes olho para o corredor e vejo a tua sombra se esfegando nas paredes, arranhando os tapetes, me deixando irritada pela tua teimosia dissimulada. Corpo mole, fingindo sempre uma submissa fragilidade, que nós dois sabíamos não existia. Gato canalha!
Eras meu companheiro das madrugadas. Juntos escrevíamos textos e poemas, ouvíamos música e o tic-tac do relógio compassava os nossos corações, o teu e o meu, velhos lobos solitários uivando para a lua que nos espiava pela porta da sacada.
Quando eu estava triste, logo pressentias e vinhas me oferecer o calor dos teus misteriosos olhos azuis, que sempre me inundavam com um amor silencioso e verdadeiro.
Quando eu ficava sozinha, minhas mãos nunca estavam vazias de carícias, estavas sempre ao meu lado, ao alcance da minha solidão.
Eu era tua e sempre te repetia que seríamos um só defunto.
Agora olho para o outro lado da escrivaninha onde costumavas te acomodar para observar-me atentamente, bisbilhoteiro dos meus pensamentos, avaliando meus sentimentos, com aquele olhar tipo "farol baixo" que invadia disfarçadamente os recantos mais ocultos do meu ser, meus baús de trancas, meus segredos fechados em diários antigos, tu não estás lá.
Onde estavam as tuas outras seis vidas quando precisaste?
Aquela, estendida e fria, sem graça, era a última então?
Naquele dia enterrei contigo um pedaço do meu coração. Eras a minha melhor companhia, não tinhas o direito de confrontar-me com a tua morte, sem aviso prévio.
Eu era a tua bruxa, Otacílio, e trago a tua imagem sempre comigo para que um dia, quando chegar a minha hora eu possa reconhecer-te naquele túnel de luz, onde com certeza estarás a minha espera.

texto de Liane Flores - 2003 - direitos reservados                                               E o galo já cantou!

Nota da Autora

Pavarotti foi assassinado em 2003, após o Reveillon, com 9 anos de idade, na Praia de Ponta das Canas, por um sociopata anônimo.
Os assassinos de animais, assim como os de gente, vivem nas sombras e são brindados com a impunidade. Apesar dos noticiários divulgarem sobre a venda de chumbinho, os sociopatas continuam agindo doentiamente.
Assim morrem os animais, as pessoas, os sonhos, as esperanças.

OTACÍLIO

Quem além de mim conviveria harmoniosamente com um gato canalha, chamado Pavarotti?
Malemolente, curioso, sempre pronto a dar palpites, mesmo sem ser consultado
Boêmio, piegas, adora ouvir música comigo e tomar sol na mesa verde da sacada. Faz greve de fome para impor o seu ponto de vista e provavelmente vai disputar com unhas e dentes uma vaguinha no meu caixão. Seremos juntos um só defunto!
Siamês de origem, brasileiro por convicção, um gato chato de galochas, primo distante do gato-de- botas.
Apesar de sua teimosia implicante, é sempre o meu melhor companheiro das madrugadas. Enquanto
escrevo compulsivamente ele me observa com o canto dos olhos puxados, azuis, semicerrados. Finge estar dormindo, mas basta um movimento meu para que emita a sua opinião sem ser chamado.
É público da minha primeira audição, leio meus trabalhos e ele escuta com  a atenção de uma coruja pós-graduada.
Às vezes em ataques Shakespearenos chamo-o de "Otacílio". Ele como um bom neurótico em crise de identidade me atende.
Nessas horas eu penso que talvez esteja tendo uma iluminação sobre as suas outras seis vidas. Quem sabe ele não foi um Otacílio qualquer?
Poeta, boêmio, sentado em uma mesa de  um bar de uma cidade qualquer, abandonado, desejando uma companhia para as suas longas madrugadas de solidão.
Pensando nisto entendo perfeitamente o seu interesse quase hipnótico pela lua.




texto do livro Para Um Homem Chamado Silêncio - Liane Flores - direitos reservados
                                                                                                                            
E o galo já cantou!

Existe u mundo infinito que tenta ser-te íntimo. No teu lado esquerdo existe uma passagem, entra e ouve o suave canto dos seres que te habitam dentro.

INÁCIO - Um amor sublime amor

Inácio foi um daqueles encontros maravilhosos e inesquecíveis que a vida nos oferece. Éramos almas gêmeas, feitos um para o outro. Lembro dele dentro daquele uniforme do Colégio Militar de Porto Alegre, com o seu sorriso descarado desenhando um par de covinhas indecentes no rosto de menino, já de barba cerrada. Seu olhar esverdeado era irresistível e sedutor, aos quinze anos de idade.
Deus na sua infinita sabedoria não nos uniu por tempo suficiente para macular um amor assim tão perfeito
com as mazelas da desilusão. Então, na minha memória, ele permanece cristalizado, intocável, não envelheceu, não engordou, não azedou. Vive emoldurado por aquela luz de fundo que dá brilho às grandes histórias de amor.
Nosso romance juvenil às vezes se confunde com as grandes produções cinematográficas que a gente assistia de maos dadas, em tardes de domingo no cinema Marrocos. Uma love History, um amor sublime amor, ele o meu Romeu e eu a sua Julieta.
O desgosto e desgaste era das famílias, pois diziam que éramos primos, desculpas para nos afastar.
Os encontros das turmas do bairro, final dos anos sessenta, muita música, muita dança, minhas amigas, os amigos dele, nossos amigos, muita rebeldia e a agitação dos anos dourados, no tempo em que o lança-perfume era liberado e a cuba libre embalava nossas baladas de sábado à noite, ao som dos Beatles e muito rock- and -roll, era tudo o que precisávamos para escrever a nossa história.
E aquelas tardes de domingo no escurinho do cinema? Longe da repressão, bocas meninas com desejos adultos, momentos que jamais esquecerei.
Nosso namoro era patrocinado por minha mãe, auxiliado por amigos, tias, irmãs e irmãos menores, que na sua pureza infantil e acima de qualquer suspeita carregavam o calor da nossa paixaõ em infindáveis bilhetinhos apaixonados.
Biológicamente ele era três anos mais moço do que eu, mas na aparência e experiência era pura magia e sedução. Naqueles tempos fumar era pré-requisito para o sucesso e uma das portas de acesso à emancipação. Nós dois então fumávamos Minister, ( O M que satisfaz).
Como nem sempre podíamos sustentar nosso dispendioso vício delinquente, em várias oportunidades dividíamos o mesmo cigarro.
João Artur, seu irmão caçula, trazia dentro do violão Gianini 10, a metade de um cigarro, invariavelmente a parte do filtro, totalmente manuscrita com declarações de amor abnegado, eu te amo, eu te amo, eu te amo.
Doía incinerar tanta devoção. Prova maior de amor não poderia haver!
Inácio tocava violão divinamente e cantava para mim o tempo todo. Éramos radiantemente felizes e não sabíamos, queríamos crescer, ser adultos, ansiávamos por mais liberdade, principalmente para o nosso amor, quele tipo de liberdade que quando chega contamina e destrói como um vírus letal, todas as sensações que só o proibido produz.
Meu pai fez de tudo para nos separar e conseguiu. Não lamento!
Hoje quando preciso de encantamento, esperança, de crença no amor genuíno, abro as portas das recordações mais incríveis da minha juventude e lá está Inácio à minha espera, tocando violão e cantando a nossa canção: "volta meu amor, não sei viver sozinho assim, tão longe de você, meu pranto não tem fim"...
No cinzeiro, meio Minister queima sozinho, sem a parte do filtro, esta ainda queima nos meus lábios.

texto do livro Para Um Homem Chamado Silêncio
Direitos Reservados: Liane Flores - Editora Movimento - P.Alegre

E o galo já cantou!

CARTA DE AMOR A MINHA TERRA

Porto Alegre,
onde estão os teus braços para que eu me aconchegue e repouse?
Embala-me no teu regaço, pois sentindo-te palpitar adormecerei.
Longe de ti, Porto Alegre,
meu coração navega nas ondas destes mares distantes
e as lágrimas que caem,
misturam-se às verdes águas para encantar a poção mágica
que irá cicatrizar minhas feridas,
fendas vivas, que sangram de tristeza e dor
pela saudade tua.
Quero rever o meu quintal
onde ainda estou plantada entre caracóis e margaridas,
na Rua José de Alencar,
a alma presa por raízes fincadas naquele chão.
Quero mexer no tempo, brincar de ontem,
andar comigo mesma pelas ruas que já passei,
sentar em praças que já sentei, sob o teu céuque me viu crescer,
em busca do que lá deixei... e não foi um pedaço só!

Direitos Reservados: Liane Flores    do livro A Outra Face - Ed. Movimento 1983

E o galo já cantou!

Prólogo

A pena não se poupou, nenhum trabalho foi exagerado,
mostramos aquilo que ninguém havia cogitado,
falamos de um mundo que excede a todo o imaginado,
e subimos ao céu, mergulhamos num abismo insondado,
para que fosse o nosso circo por todos admirado.

Charles G.Finney

Foto da contracapa do primeiro livro publicado, O Grande Ausente, Editora Movimento - 1983

Este