quarta-feira, 2 de junho de 2010

FANTASMA DE OTACÍLIO ( para Pavarotti)

Hoje senti a tua falta como se tivesses me deixado ontem e lembrei do teu pequeno corpo sem vida, revivendo a agonia daquele maldito dia! Sofreste abandonado a tua própria sorte e eu chorei de novo a tua morte.
Maldisse mil vezes a minha impotência diante do fato consumado, minha sensação de negligência pelo que poderia ter sido evitado.
Às vezes olho para o corredor e vejo a tua sombra se esfegando nas paredes, arranhando os tapetes, me deixando irritada pela tua teimosia dissimulada. Corpo mole, fingindo sempre uma submissa fragilidade, que nós dois sabíamos não existia. Gato canalha!
Eras meu companheiro das madrugadas. Juntos escrevíamos textos e poemas, ouvíamos música e o tic-tac do relógio compassava os nossos corações, o teu e o meu, velhos lobos solitários uivando para a lua que nos espiava pela porta da sacada.
Quando eu estava triste, logo pressentias e vinhas me oferecer o calor dos teus misteriosos olhos azuis, que sempre me inundavam com um amor silencioso e verdadeiro.
Quando eu ficava sozinha, minhas mãos nunca estavam vazias de carícias, estavas sempre ao meu lado, ao alcance da minha solidão.
Eu era tua e sempre te repetia que seríamos um só defunto.
Agora olho para o outro lado da escrivaninha onde costumavas te acomodar para observar-me atentamente, bisbilhoteiro dos meus pensamentos, avaliando meus sentimentos, com aquele olhar tipo "farol baixo" que invadia disfarçadamente os recantos mais ocultos do meu ser, meus baús de trancas, meus segredos fechados em diários antigos, tu não estás lá.
Onde estavam as tuas outras seis vidas quando precisaste?
Aquela, estendida e fria, sem graça, era a última então?
Naquele dia enterrei contigo um pedaço do meu coração. Eras a minha melhor companhia, não tinhas o direito de confrontar-me com a tua morte, sem aviso prévio.
Eu era a tua bruxa, Otacílio, e trago a tua imagem sempre comigo para que um dia, quando chegar a minha hora eu possa reconhecer-te naquele túnel de luz, onde com certeza estarás a minha espera.

texto de Liane Flores - 2003 - direitos reservados                                               E o galo já cantou!

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